Atenção: As fontes dessa pesquisa estão ao final do texto. Usei várias reportagens, bem como estudos, além de sites oficiais do Census US, do governo do estado de NY e da cidade de NY. Também conversei com duas enfermeiras especializadas em saúde pública e coletei depoimentos de brasileiros e suas experiências com planos. Esse material não tem objetivo nem pretensão ser um guia definitivo sobre o assunto. O tema sistema de saúde nos EUA é complexo e com várias amarras – a ideia aqui foi dar um panorama geral. Se você acha que encontrou algum equívoco ou tem alguma contribuição interessante, vou adorar receber seu feedback em laura@lauraperuchi.com
Esta é a parte 1 de uma série de três posts sobre o sistema de saúde americano.
Confira também:
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Parte 2: Medicaid, Medicare e outros programas dos governos
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Parte 3: Análise crítica: por que o sistema de saúde americano é um fracasso?
O sistema de saúde nos EUA
Desde que eu vim morar em Nova York, o assunto “sistema de saúde” tem sido uma incógnita para mim. Ao contrário do que acontece no Brasil e em outros países do mundo, não existe um sistema de saúde público universal aqui nos Estados Unidos. Saúde, para a maioria das pessoas que mora aqui, é um serviço pelo qual você precisa pagar do seu bolso.
Claro que vale lembrar que, em países como o Brasil, França, Canadá ou Dinamarca, os serviços ditos gratuitos são, na verdade, financiados pelo bolso do contribuinte. O que acontece é que o dinheiro pago em impostos volta em forma de serviços. Nos EUA, apesar dos impostos altos, o contribuinte não tem esse tipo de serviço em retorno – pelo menos não todos.
Quantas vezes você já ouviu falar que, apesar de não ser obrigatório no momento de entrada nos EUA, é bom ter um seguro-viagem, já que, caso venha a precisar de serviços de hospitais, a conta passa dos quatro dígitos? Quantas vezes você já ouviu falar de pessoas que quebraram porque não conseguiram pagar suas contas em hospitais? Quantas vezes você já ouviu sobre a disparidade de preços entre serviços aqui e no Brasil ou até mesmo entre medicamentos considerados simples?
Muitos achismos e histórias rondam o sistema de saúde dos EUA e, nas últimas semanas, com o crescimento da pandemia do Coronavírus no mundo, cresceu também o interesse das pessoas em entender mais sobre o sistema de saúde americano. Aproveitei a oportunidade para aprender mais a respeito e poder explicar para vocês.
Panorama geral sobre a saúde nos EUA
Os Estados Unidos são o único país rico do mundo sem um sistema de saúde universal. O país apenas promulgou uma legislação que exige cobertura de saúde para quase todos. Seu sistema pode ser descrito como híbrido, sendo que em 2014, 48% dos gastos com saúde dos EUA vieram de fundos privados – 28% de famílias e 20% de empresas privadas. O governo federal foi responsável por 28% dos gastos, enquanto os governos estaduais e locais foram responsáveis por 17%. A maioria dos cuidados de saúde, mesmo se financiada publicamente, é prestada em particular, por empresas com ou sem fins lucrativos.
Basicamente, há três modalidades de seguro de saúde aqui:
- Seguro de saúde via empregador ou particular – é quando a pessoa tem acesso ao seguro por conta de seu trabalho. Geralmente, o custo da mensalidade do seguro é dividido entre a empresa e o empregador. Também se encaixam aqui os profissionais liberais e freelancers, que pagam o seguro integral do próprio bolso. Vale lembrar que um trabalhador não tem que, necessariamente, contratar um seguro somente dentre aqueles oferecidos pelo seu empregador.
- Medicare – é um seguro bancado por fundo público (através dos impostos pagos pelo contribuinte) destinado a idosos (mais de 65 anos). O Medicare também cobre algumas pessoas com deficência. Só tem direito quem contribuiu – e a contribuição está ligada ao recolhimento através do salário.
- Medicaid – é um programa similar ao Medicare, porém voltado às pessoas de baixa renda e não tem contribuição direta dos cidadão beneficiados. É financiado pelo estado e a cobertura varia de estado para estado.
Seguro de saúde via empregador ou particular
De acordo com dados recentes da Kaiser Family Foundation (KFF), aproximadamente 156 milhões de americanos, ou cerca de 49% da população total do país, têm seguro de saúde vinculado ao trabalho.
Um relatório publicado pelo Census em setembro de 2019 destaca que:
- Em 2018, 8,5% das pessoas, ou 27,5 milhões, não tinham plano de saúde em nenhum momento do ano. A taxa não segurada e o número de não segurados aumentaram em relação a 2017 (7,9% ou 25,6 milhões).
- Em 2018, a cobertura de seguro de saúde privado continuou a ser mais prevalente do que a cobertura pública, cobrindo 67,3% da população e 34,4% da população, respectivamente. Dos subtipos de cobertura de seguro saúde, o seguro baseado no empregador permaneceu o mais comum, cobrindo 55,1% da população durante todo ou parte do ano fiscal.
- A porcentagem de crianças com menos de 19 anos sem seguro aumentou 0,6 pontos percentuais entre 2017 e 2018, para 5,5%.
Além de entender esses dados, é necessário compreender como funcionam os seguros de saúde aqui e os fatores envolvidos. O seguro de saúde funciona protegendo seus ativos do alto custo dos cuidados médicos. Sem ele, toda a economia de vida de uma pessoa poderia ser aniquilada por uma conta médica altíssima – vale lembrar que os custos com saúde são a principal causa de falências nos EUA, como será mostrado nesta série de posts.
Por isso, ter um seguro de saúde é necessário. Por quê? Porque é basicamente necessário a todos que não querem ter que desbancar toda suas economias ou uma grande parte dela ou declarar falência numa emergência médica. E vale destacar que, nos EUA, há dois grupos de pessoas que têm acesso a seguro saúde bancado pelo governo:
- Pessoas com mais de 65 anos ou com alguma deficiência têm acesso ao Medicare;
- Pessoas muito pobres (muito pobres mesmo!) podem se qualificar para o Medicaid.
Falando do seguro de saúde em si, são muitas opções. Para escolher um plano, o indivíduo precisa analisar várias combinações de franquias, co-pagamentos, cosseguros e mensalidades:
Premiums | Mensalidades
Como o seguro de um imóvel ou de um carro, é a taxa que você paga, mesmo que nunca use o serviço. Normalmente, essa taxa é paga mensalmente. É um conceito bem comum, já que no Brasil os convênios particulares e seguros de carro, imóvel ou de vida também cobram uma taxa fixa mensal, mesmo que você não use o serviço.
Deductible | Dedutível
Isso é o que você paga antes que a companhia de seguros contribua com um centavo. É o que chamamos de franquia, o mínimo de gastos que você precisa atingir antes de o seguro assumir os pagamentos. Essas franquias podem variar de U$500 por ano a U$10.000 por ano ou mais. As franquias mais baixas estão disponíveis apenas nos planos patrocinados pela empresa. São anuais, o que significa que a sua franquia zera em 1º de janeiro de cada ano. Geralmente, os planos via empregador têm uma franquia mais baixa.
- Exemplo: suponha que a sua franquia anual seja de U$3000. De uma maneira geral, seus gastos em saúde começam a ser cobertos quando você atingir esse teto. Vale lembrar também que quanto mais alta a sua franquia, mais baixo tende a ser o valor da sua mensalidade. Quanto mais baixa a sua franquia, mais alta tende a ser a sua mensalidade.
In-network and out-of-network | Dentro da rede e fora da rede
Também é preciso considerar os consultórios, clínicas e serviços de saúde que estão dentro da rede do seu seguro de saúde – e que, por via de regra, terão preços melhores.
- Exemplo: suponha que você vá a um médico que está na rede e a cobrança total é de U$ 250. Esse valor conta com desconto, devido à negociação entre o seguro e o médico. O desconto é de U$75. O seguro paga U$140. Você terá que pagar o restante: U$35.
- Num segundo exemplo, você vai a um médico fora da rede. Nenhum desconto é aplicado à cobrança total. Ainda assim, seu seguro paga U$140, mas você será responsável pelo restante, que é de U$110.
- Vale salientar que aceitar um seguro e estar “na rede” do seguro não são necessariamente a mesma coisa. Um médico pode aceitar o seguro X, mas isso não significa que ele esteja na rede de provedores do seguro X.
- Ou seja, geralmente, ir em um médico que aceita seu seguro e está na rede do seu seguro, é a melhor estratégia para gastar menos.
Copayment | Co-pagamento
É um valor fixo (U$20, por exemplo) que você paga por um serviço de saúde coberto depois de pagar sua franquia. Por exemplo, se você já atingiu sua franquia: você paga U$20, geralmente no momento da visita. Se você não atingiu sua franquia: você paga o valor total determinado pela visita.
Coinsurance | Cosseguro
O cosseguro é uma porcentagem de uma taxa médica que você paga, com o restante pago pelo seu plano de seguro de saúde. Isso normalmente se aplica após atingir o limite do deductible. Por exemplo, se você tiver um co-seguro de 20%, pagará 20% de cada conta médica e seu seguro de saúde cobrirá 80%.
Out-of-pocket maximum | Limite do próprio bolso
É um limite máximo estabelecido pelo qual pode pagar em um ano, do próprio bolso, pelos seus cuidados de saúde antes que o seguro cubra 100% da conta. O governo define os máximos permitidos para planos privados.
Traduzindo em miúdos:
- Você paga uma mensalidade apenas para ter um seguro de saúde.
- Ao precisar de um médico ou de um hospital, você é responsável por pagar o custo total pelos serviços ou o copay, conforme a política do seu seguro.
- Depois que o valor total que você pagou por serviços, sem incluir os copays, atinge o valor do seu dedutível anual, seu seguro começa a pagar uma parcela maior de suas contas médicas, normalmente de 60% a 90%. A porcentagem restante que você paga é chamada de cosseguro.
- Você continuará pagando copay ou cosseguro até atingir o valor máximo anual de sua apólice (o limite do próprio bolso). Nesse momento, sua seguradora começará a pagar 100% de suas contas médicas até o final do ano da apólice.
Porém, há exceções. “Esse fato de um seguro cobrir tudo após você atingir 100% do valor do Limite do próprio bolso não é uma regra universal. Vale para os planos de saúde bons, mas para muitos há um limite de consultas, limite de dias de internação e limite do valor no medicamento que eles cobrem”, explica Luísa M M Fernandes, pesquisadora e doutora em Saúde Pública pela SUNY Albany, NY. Num exemplo dado por Luísa, um seguro pode cobrir até 60 dias de internação para determinada doença e, depois disso, recusa o pagamento – e o hospital cobra do paciente essa conta.
Calculando gastos com seguro de saúde
Nada melhor para entender e ilustrar como funciona o básico de seguro de saúde, usando um exemplo: Ana é solteira e tem um seguro de saúde que vamos chamar de Empire, cuja franquia anual é de U$1200. O plano dela também envolve o pagamentos de copays – que não são dedutíveis do limite anual do seguro dela. Depois que a franquia é atingida, o seguro Empire cobre 80% das contas – e Ana fica responsável 20%, o chamado cosseguro.
Lembre-se que esse é um exemplo baseado no seguro que Ana contratou e nas políticas deste seguro.
Cenário 1 – Ana faz consulta médica e exames preventivos
Ana faz uma visita anual ao ginecologista e o exame preventivo papanicolau. Como esse ginecologista faz parte da rede do seguro Empire, esta é uma consulta gratuita de cuidados preventivos. No entanto, conversando com Ana, o médico decide pedir que ana visite um mastologista e o mastologista solicita um ultrassom das mamas.
O copay – valor que Ana deve pagar – para consulta em um especialista na rede do seguro Empire é de U$50 e a seguradora cobrirá o restante do valor da consulta com o mastologista. A clínica de ultrassom na rede do seguro Empire cobra U$700 pelo exame, incluindo as taxas do radiologista pela interpretação/laudo do exame.
Exames como esse estão “sujeitas à franquia” nos termos da política do plano de Ana, então ela deve pagar do próprio bolso, porque ainda não atingiu a franquia. Portanto, a Empire não pagará nada pelo ultrassom.
Nesse cenário, os custos totais do próprio bolso de Ana são:
- U$50 copay do mastologista
- U$700 para o exame
- Total = U$750
Cenário 2 – Ana vai para o pronto-socorro
No fim do ano, Ana caiu enquanto caminhava na neve e machucou o tornozelo. Ela vai até uma emergência da rede do seguro – esse serviço tem um copay de U$100. Após o copagamento, as cobranças de emergência foram de U$3.000. Sua franquia será aplicada a seguir.
Ana já pagou nesse ano U$750 de sua franquia de U$1.200 no início do ano por conta daquele ultrassom, lembram? Assim, ela é responsável por U$450 da conta de U$3000. Ao pagar esses U$450, ela atinge o dedutível anual de U$1.200. A conta fica em U$2550 e agora seu seguro de saúde, que tem a política 80/20 de cosseguro, pagará 80%, ou U$2.040, deixando Ana com um cosseguro de 20% desse total restante ou U$510.
Nesse cenário, os custos totais do próprio bolso de Ana são:
- U$100 copay da emergência
- U$450 da franquia restante
- U$510 20% cosseguro
- Total = U$1060
Ana já pagou U$1810 em custos médicos este ano, sem incluir as mensalidades do seguro. Ela também atingiu sua franquia anual; portanto, se precisar de cuidados novamente, pagará apenas copays e 20% de cosseguro até atingir o limite do Out-of-pocket.
Complicado, né? Por isso, é importante entender muito bem o que o seguro cobre e oferece. Mas, vale o questionamento: por que as companhias de seguros cobram franquias, co-pagamentos e outras coisas? A ideia é impedir que as pessoas se dirijam ao médico a cada espirro. A preocupação das seguradoras é que, se os serviços de saúde fossem 100% sem custos além da mensalidade, os gastos dessas empresas dispararia. Talvez um dos problemas mais graves desse sistema de saúde é que o foco acaba sendo sempre em remediar e quase nunca em prevenir. Muitas pessoas deixam para ir no médico só em último caso por medo dos gastos e em várias vezes isso pode ser fatal.
Obviamente, todas essas opções tornam muito difícil escolher o seguro de saúde nos EUA. Por exemplo, você pode estar disposto a pagar uma mensalidade mais alta por uma porcentagem mais baixa de cosseguro e/ou dedutível. Isso faz sentido quando a pessoa tem uma doença crônica, como diabetes, e sabe que precisará de um médico com frequência.
Por outro lado, pessoas saudáveis podem querer a mensalidade mais baixa possível e uma franquia mais alta. Elas estão dispostas a arriscar pagar mais pelos cuidados de saúde, porque acreditam que as chances de precisarem são pequenas. Quanto menor a franquia, maior a mensalidade, co-pagamento ou cosseguro. À medida que os custos com saúde aumentaram, mais pessoas optaram por planos dedutíveis mais altos apenas para manter suas mensalidades acessíveis.
Perceba que escolher um seguro acaba se tornando uma escolha complicada, já que a verdade é que as pessoas precisam de seguro não apenas para consultas de rotina ou para acompanhamento de doenças crônicas. Ninguém sabe quando sofrerá um acidente ou quando desenvolverá um câncer. Por outro lado, as pessoas também não querem pagar um valor alto por um serviço que elas não sabem se vão usar.
Confira também:
- Parte 2: Medicaid, Medicare e outros programas do governo
- Parte 3: Análise: por que o sistema de saúde americano é um fracasso?
FONTES:
- MPR – Law 101: Emergency Medical Treatment and Active Labor Act (EMTALA)
- The Infographics Show: US Healthcare System Explained
- USA Today: This is the No. 1 reason Americans file for bankruptcy
- KFF: An Overview of Medicare
- DPE: The U.S. Health Care System: An International Perspective
- Investopedia: Medicaid vs Medicare
- ABC News: Obamacare Explained (Like You’re An Idiot)
- The Balance: How Health Insurance Works
- eHealth: How Many Americans Get Health Insurance from their Employer?
- Census: Health Insurance Coverage in the United States: 2018
- NYC Care
- Aspe: Poverty Guidelines
- Blue Cross: How health insurance works
- Nerd Wallet: What Is the Difference Between In-Network and Out-Of-Network?
- Nerd Wallet: Out-of-Pocket Health Costs: Copays, Coinsurance & Deductibles
- NYSH – What is NY State of Health
- Vox: America’s health care prices are out of control. These 11 charts prove it
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Laura Peruchi é jornalista, autora e empreendedora. Mora em Nova York com seu marido desde 2014, e, desde então, divide em seu blog um conteúdo variado sobre a Big Apple. Com dicas de turismo, compras, restaurantes e muito mais, sua plataforma online tornou-se referência em conteúdo em português para quem está planejando uma viagem a Nova York. Acompanhe Laura também no Instagram, Youtube, Facebook e Spotify.
Parabéns por abordar tão bem algo tão complexo !!
Parabens, Laura! O assunto foi tratado de forma interessante, alem de o texto estar bem escrito e super didatico. Muito esclarecedor. Obrigada😊